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Um lindo conto

Há quase cem anos que o idoso estava a caminhar. Ele tinha atravessado a infância, a juventude, mil alegrias e dores, mil esperanças e cansaços.  Mulheres, crianças, países, sóis povoavam ainda a sua memória. Ele os tinha amado. Eles estavam agora atrás dele, distantes, quase apagados. Nenhum o tinha seguido até aquele fim de mundo onde ele tinha chegado. Ele estava sozinho agora em frente ao vasto oceano. À beira das ondas ele fitou o alto e se voltou. Na areia que se perdia nas brumas infinitas, marcou então as pegadas dos seus passos. Cada um era um dia de sua longa existência. Ele os reconheceu a todos, os tropeções, os passos difíceis, os desvios e os degraus felizes e infelizes. Ele os contabilizava. Nem um só faltava. Lembrou-se, sorriu ao caminho da sua vida. Como ele se desviava para entrar na água escura que molhava suas sandálias, ele, de repente, hesitou . Pareceu-lhe ver ao lado dos seus passos algo estranho. De novo, ele olhou. Na verdade, ele não tinha caminhado sozinho. Outras pegadas, ao longo da sua estrada, iam junto das suas.  Ele não tinha nenhuma lembrança de uma presença tão próxima e fiel. Ele se perguntou quem o tinha acompanhado. Uma voz familiar e sem rosto lhe respondeu: “sou eu”. Ele reconheceu o seu próprio antepassado, o primeiro pai da longa linhagem de homens que lhe tinham dado a vida, aquele que se chamava de Deus. Lembrou-se que no momento do seu nascimento este pai de todos os pais lhe prometeu que nunca o abandonaria. Ele sentiu uma alegria antiga e agora renovada, subir em seu coração . Ele nunca tinha experimentado algo semelhante desde à infância; estava ainda a olhar. Então, de muito longe, viu na longa vida algumas pegadas paralelas  mais estreitas. Em alguns dias de sua vida, o traço era único. Lembrou-se destes dias. Como é que os teria esquecido? Foram os mais terríveis, os mais desesperados. Ao lembrar dessas horas miseráveis entre todas onde ele tinha pensado que não havia pena nem no céu nem na terra, ele se sentiu de repente amargo, melancólico.

 ” vê esses dias de desgraça, diz ele, eu andei sozinho. Onde você estava Senhor, quando eu chorava com a tua ausência?”

meu filho, meu amado, respondeu-lhe a voz, essas pegadas solitárias são as dos meus passos. Aqueles dias em que você acreditava estar só, abandonado de todos, eu estava lá, na sua estrada. Aqueles dias em que você chorava com a minha ausência, eu te usava.”

Fonte: © Henrique gougaud